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Viração

  • Foto do escritor: Maro Klein
    Maro Klein
  • 18 de nov. de 2023
  • 3 min de leitura

Atualizado: 21 de nov. de 2023



À meia tarde, o vento mudou sua direção. O céu se fechou e as nuvens cor de chumbo aplacaram o sol que antes iluminava. As copas das árvores estão agitadas. É mês de agosto. Faz um pouco de calor, mas já começamos a sentir, nos pelos dos braços, a chegada de uma viração.


Os animais nos potreiros seguem soltos; uns cantam, outros ciscam, alguns pastam, inteiramente desavisados. As máquinas e ferramentas descansam dentro dos galpões. Um rádio foi esquecido ligado. Ouvimos a música que ele emite, ao longe, mas sem conseguir distinguir exatamente a melodia.


O vento invadiu a cozinha, carregando para dentro dela folhas secas do parreiral e da grande paineira do pátio. Sobre o fogão à lenha, uma chaleira foi esquecida ao canto, e exala um leve vapor, pouco a pouco.


A casa se calou. Os espelhos estão cobertos. Não se ouve a risada das crianças. Ninguém lembrou de fechar as portas. É possível ouvir somente o som do motor da geladeira ligando e desligando.


Caminhando lentamente pelo corredor, o piso de madeira range sob os nossos pés. Encontramos o quarto, onde a velha cama de ferro está estendida e ornada com a colcha branca tricotada à mão. Alguns raios de sol insistentes rompem a escuridão do céu e atravessam a janela para se deitar sobre ela, refletindo sua luz e gerando uma atmosfera ocre.


Sobre a penteadeira, um creme para as mãos, um perfume, uma santinha e um terço. A caixa de remédios segue ali, agora já sem nenhuma utilidade. As roupas esperam bem passadas e inocentes, todas em fila, penduradas no armário.


As paredes da sala e as prateleiras do armário de cedro estão encobertas por dezenas de retratos. Filhos, netos, bisnetos, tataranetos. Alguns rostos felizes nos olham, causando, assim, certo espanto. Batizados, casamentos, bodas de prata, depois bodas de ouro, festas de família, natais, torneios de futebol, carreiras. Tudo parece agora muito inconveniente.


Então flutuamos até a varanda da frente, aonde a encontramos ainda sentada. Os longos cabelos de algodão estão presos, guardando dentro deles as lembranças de outros muitos dias de vento. As mãos, tal como as folhas secas da parreira, descansam calmas no respaldar da cadeira. Os olhos iluminados estão distraídos, alternando a atenção entre o horizonte e o jardim à frente.


Ao perceber a nossa presença, ela se ergue lentamente para nos receber. Imediatamente abre o largo sorriso, a voz alegre e alta ecoa, recebemos mais uma vez o seu abraço muito apertado. E escutamos: filho, filha, não importando se temos, com ela, qualquer laço de sangue.


Ela nos convida a sentar. Pergunta por conhecidos, nos conta uma breve história, comenta sobre o tempo, que tem andado um tanto estranho. Sorve e logo depois nos oferece o chimarrão, sem qualquer pressa. Súditos leais que somos, aceitamos. Súditos leais que somos, a reverenciamos, a admiramos, a escutamos absortos. Já não nos sentimos loucos, nem ansiosos, nem perdidos.


Ela nos convida então, como de costume, para passar à mesa. Quer ter a certeza de que nos nutrimos bem. O fogão a lenha ganha uma sobrevida, ela o alimenta com gravetos e aquece a água para o café. Estende a toalha sobre a mesa, com a sua impecável borda de crochê. Sobre ela, coloca um bolo feito ainda ontem; um doce caseiro conservado desde o último verão; as frutas que colheu logo antes, cedo, na manhã.


O frio começa então a sua invasão lenta, carregado pelo vento que uiva pelas frestas da porta e janelas da cozinha, e pela noite que agora cai. Fingimos não perceber e seguimos a conversa. Rimos de antigas histórias e personagens, desvendamos um segredo. Perdemos a noção do tempo. Agora, já não sabemos se se passaram alguns segundos, algumas horas, ou uma vida inteira.


Ela tudo percebe, mas, como sempre, permanece serena. Ocupa-se organizando algumas coisas para levarmos. Um maço de folhas para fazer chá. Frutas e verduras da sua horta, depositadas em uma sacola. Algumas fotografias antigas. Talvez até haja tempo para um último e bem-vindo conselho, quem sabe?


Relutantes, deixamos o calor e a luz do fogo da sua cozinha para sermos absorvidos pelo frio e pela escuridão, já do lado de fora. Na tentativa de nos aquecermos, envolvemos nos braços os presentes que ela nos deu.


A única coisa que ouvimos é o barulho lento e ritmado enquanto vamos pisando respeitosamente as grossas camadas de folhas secas da parreira, que agora se avolumaram subitamente no chão.


Em memória à Ana Zanela.


 
 
 

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© 2023 by Maro Klein (amaroklein@gmail.com)

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