Revelação
- Maro Klein
- 10 de mar. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 14 de mar. de 2024

Era mais um dia cinza no inverno londrino. Sophia caminhava ao longo do Embankment por volta das oito da manhã, já com um grande copo de capuccino nas mãos. Entrou apressada por Middle Temple Lane até chegar ao escritório de advocacia. As paredes guarnecidas de madeira escura tornavam ainda mais sombria aquela manhã. Sentou-se e começou a trabalhar. Precisava terminar uma apresentação que faria logo mais, às dez horas.
Um sol tímido se ensaiou por entre as nuvens, próximo do horário da reunião. A calefação tornava o ar pesado e ligeiramente opressor. Ela foi até o banheiro retocar a maquiagem. Por sorte, carregava um corretivo para disfarçar as olheiras. Passou um batom vermelho e arrumou os cabelos em um coque informal. Ajeitou os óculos. “Estou com medo” – pensou – “mas vou com medo mesmo”. Ela já estava habituada a esse sentimento. Tinha consciência que sofria de uma clássica síndrome de impostora.
Sophia era a primeira geração, nascida em solo britânico, de uma família brasileira que imigrara para a Inglaterra. Sua mãe trabalhara como babá e o pai, como garçom, mantendo a muito custo a família de dois filhos – Um irmão que viera ainda bebê com seus pais, da Bahia, e Sophia, que nasceu em um hospital em Hammersmith nas primeiras semanas do novo século.
Assim, Sophia crescera sabendo que era um ser híbrido – metade baiana, metade britânica. A sua aparência – pequena, morena, de fina cintura e quadris largos, olhos cor de mel e longos cabelos escuros cacheados - em resumo, uma filhote de Gabriela – não deixava dúvidas que não era uma nativa. Entretanto, seu temperamento e inteligência desde cedo garantiram que se integrasse, de forma surpreendente, no contexto londrino.
Se destacando desde cedo na escola, conseguiu, por fim, uma bolsa de estudos para mulheres de origem latina no prestigiado King´s College, onde estava por concluir o curso de Direito. Era imbatível em debates ou na discussão de casos jurídicos, o que garantiu sua seleção para estagiar no secular escritório em Inner Temple.
Entrou na sala de conferências, olhando para baixo. Ao redor da grande mesa de madeira, nove advogados aguardavam pela apresentação da estagiária. Todos eles homens brancos de meia idade. Três deles, os sócios que seguiam uma tradição de gerações e gerações de advogados que por ali operavam.
Sophia respirou fundo e começou a projeção de slides e sua argumentação. Trinta minutos depois, abriu-se para que houvesse uma discussão sobre a sua proposição de solução para um caso.
Os comentários eram duros e hostis. Ninguém estava ali para facilitar a sua vida. O treinamento de um estagiário, naquele meio, era rigoroso. No entanto, uma a uma, Sophia foi trazendo respostas para cada colocação, para cada crítica, e para cada objeção. Conseguia ler em cada olhar um julgamento subliminar. Em um, “quem ela pensa que é”, em outro “quanta segurança”, em um terceiro “será que ela é cubana?”.
Lentamente, um estranho fenômeno tomou conta da sala. As críticas se apaziguaram. O clima se tornava mais leve. Os olhares se tornavam calmos e contemplativos. Vários homens sorriam. Sorriam. Sophia demorou um pouco a perceber o que estava acontecendo. Sentia que aqueles rostos expressavam agora outros pensamentos. “Que dia bonito está hoje, apesar do frio”; em outro “de onde vem esse cheiro de rosas?” e em outro “ouço o barulho das ondas do mar”.
Os homens a olhavam como que hipnotizados. Perderam o fio da meada, e, por alguns instantes, ficaram em silêncio, a admirando. Era como se uma sinfonia silenciosa estivesse tocando naquela sala.
A hipnose coletiva foi quebrada quando a secretária entrou na sala indicando que esta precisava ser desocupada para a próxima reunião, com clientes importantes. Os homens levantaram-se como quem acorda de um sono, e saíram lentamente. Sophia seguiu sem compreender nada, e assim continuou durante todo o turno de trabalho, tentando decifrar o que havia acontecido, mas sem qualquer pista.
Alguns dias depois, finalizava outra jornada extenuante de trabalho. Já passava das oito horas da noite quando fechou sua pasta e ganhou a rua, a caminho de casa. Desceu lentamente as escadas da estação de Temple, escutando seus próprios passos no piso frio. Observava os azulejos verdes da era vitoriana, que tanto adorava.
Ao descer na plataforma, percebe que há somente um homem aguardando o próximo trem. Sophia se abriga ainda mais em seu casaco, ajeita a manta em torno do pescoço e respira fundo, começando a relaxar após um dia tão intenso. Fica olhando para os trilhos do metrô, e seu pensamento divaga.
Lentamente, o homem que se encontrava há alguns metros de distância se aproxima dela. Ela o observa. Um típico inglês. Magro, alto, frios olhos azuis acinzentados. Veste um elegante sobretudo de lã preta, gravata, luvas de couro da mesma cor. Ele para ao lado de Sophia e ela percebe que ele tem os olhos vidrados nela.
De repente, sem saber por que, Sophia toca o sobretudo de lã do desconhecido. Sente a maciez do tecido. Percebe que o homem estremece ao seu toque. Os dois se olham nos olhos e sabem exatamente o que fazer.
Se envolvem em um abraço brusco e apertado, e se beijam loucamente. Sophia o conduz para um canto escuro da estação, que segue deserta. O próximo trem passa sem que nenhum dos dois o tome. Ela envolve-se no sobretudo do estranho, e, por baixo dele, levanta a saia em uma urgência sem fim e sem nome. Os dois corpos tremem e se entrelaçam, se amam de forma silenciosa e implacável.
Quando terminam, ambos se sentem atordoados, sem compreender o que aconteceu. Sophia deixa a estação correndo, precisa desesperadamente respirar.
Saindo à superfície, vai até a margem do Embankment, onde fica parada, ofegante, respirando o ar frio e úmido, olhando as águas do Tâmisa. A lua cheia brilha sobre a superfície do rio, cuja corrente está muito forte naquela noite. Fica aliviada ao perceber que o homem não a seguiu. “O que fiz, meu Deus?!” Ela própria não se reconhece.
Chama um taxi, e, chegando em casa, não consegue dormir, ainda sente-se fora de si. É cerca de cinco horas da manhã quando finalmente consegue pegar no sono, povoado de sonhos confusos, suor e agitação.
***
Alguns dias depois, em um domingo pela manhã, Sophia acorda e toma um longo café. Uma suave chuva cai sobre Londres, em mais um dia cinzento de inverno. Ela observa a grama de verde tão escuro, protegida pelas paredes de vidro do jardim de inverno da casa Eduardiana que aluga com três colegas. Todas viajaram para um festival de música.
Sophia se sente aliviada por ter um tempo para si, sem nenhuma demanda. Depois de tudo que aconteceu naqueles dias tão estranhos, sente que precisa recuperar suas forças. Após o café, decide tomar um banho de banheira sem qualquer horário para terminar.
Sobe para o segundo piso, prepara a água quente, a espuma. Coloca uma música suave – Nana Caymmi, que aprendeu a gostar por influência da mãe. Entra devagar e se deixa inundar pela água quentinha, que a envolve como um grande abraço. Sempre amou a água. Não há nada que mais lhe cure ou acalme.
Encosta a bela cabeça na toalha estendida sobre a borda da banheira. Fecha os olhos e se delicia, acariciando o próprio corpo. Molha os lábios e se aconchega em um torpor. Os cachos de seu cabelo se esparramam pela espuma.
De repente, porém, nota que há algo diferente sob a água...
Começa a sentir como se estivesse sentada sobre um objeto, um estranho volume e textura que não consegue distinguir. Movimenta-se para tentar tirar o objeto debaixo de si...
Grita horrorizada ao ver uma cauda balançando na superfície da água.
***
Sophia agora caminha pelas ruas de Salvador. Sente o sol de novembro queimando seu rosto. Chegou na noite anterior, seguindo a prescrição médica. A necessidade urgente de férias diante da crise de burnout que sofreu. Alucinações, crise de pânico, stress crônico, segundo o médico inglês. A família usou todas as economias para comprar a passagem. A Bahia foi o destino mais evidente. Sol e mar, e hospedagem gratuita na casa de parentes. É a primeira vez que está ali. Fala um português carregado de sotaque, as palavras lhe fogem. Mas sente-se bem como há muito tempo não se sentia.
Sobe as ruas do Pelourinho, tira fotografias. Sente o cheiro de azeite de dendê no ar e vê os belos homens e mulheres negras desfilando, os olhos amendoados, os sorrisos brilhantes e doces. Se perde pelas ruas da cidade alta, de onde vê o pôr do sol dourado.
Quando a noite cai, toma o elevador e desce à Cidade Baixa. De lá, pega um taxi para a praia do Rio Vermelho, onde está hospedada na casa da família. Diz ao motorista que lhe deixe na beira mar; quer caminhar mais um pouco para sentir a brisa noturna.
Desce da calçada, tira as sandálias, afunda os pés na areia. Ambulantes vendem refrigerantes e uma velha baiana serve acarajés aos passantes. Um grupo ao longe joga capoeira, ela escuta pela primeira vez, encantada, o som do berimbau.
A lua surge então, arrebatadora; lua cheia, gigante, amarela. A brisa do mar é morna, as ondas avançam sobre os seus pés. Então, Sophia sente algo muito estranho tomando forma.
Fica parada, na beira do mar. Despe-se completamente, aos poucos. Os seios à mostra. As longas pernas. O ventre e o sexo, aveludados.
E a sua cauda gloriosa, que agora está livre, brilha plena sob a luz da lua.
Os capoeiristas e ambulantes olham a cena, completamente incrédulos. O berimbau silencia. Somente a baiana olha de soslaio, balança a cabeça, sorri, e murmura - "Odoyá!". Segue vendendo seu acarajé. Sabe muito bem do que se trata.
Sophia avança, agora livre, a nadar no mar.
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