Repartição
- Maro Klein
- 15 de fev. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 28 de fev. de 2024

A sala do tribunal superior do trabalho estava lotada naquela tarde da quarta-feira. Lá fora, fazia 42 graus no tempo seco e abafado de Brasília. O sistema de ar-condicionado não dava conta de manter uma temperatura amena. Enquanto preparavam tudo para a chegada do juiz que presidiria o inquérito, os funcionários suavam dentro de seus uniformes.
Sentado na fileira de mesas à frente da tribuna, à esquerda do seu advogado, estava o réu. Ele disfarçava o desconforto da gravata, à qual não estava habituado. Sentado, compenetrado, com sua figura discreta e lânguida, os olhos fitando o chão, ele aguardava. Os curtos cabelos brancos estavam bem penteados, mas ainda se podia notar as marcas de kajal nos olhos, a muito custo disfarçadas.
O juiz entra – todos em pé – e abre a sessão.
- Senhor Ney Pereira, levante-se!
Tímido, mas obediente, ele se ergue sob os olhares curiosos dos presentes, incluindo o grupo de jornalistas que cobre o evento.
- O senhor será julgado por crime contra a previdência social brasileira – assevera o juiz.
- Meritíssimo – o seu advogado apela – gostaríamos de entrar com um recurso contra esse processo que não tem qualquer fundamento legal!
O juiz ignora-o, franze a testa, pede silêncio e declara:
- Sr. Pereira, dada a sua avançada idade, lhe é permitido tirar dúvidas a respeito do seu processo, antes que iniciemos a sessão. O senhor deseja exercer esse direito?
Ney olha para o juiz, percebe a avidez dos jornalistas. Longe dos palcos, sem figurino ou maquiagem, sente-se um tanto vulnerável. Entretanto - pensa consigo mesmo – não cheguei até aqui para fraquejar diante de um juiz. Levanta-se e aquiesce, dirigindo-se à tribuna dos réus.
O assistente do juiz busca levantar os dados para registro nos autos do processo.
- Seu nome completo?
- Ney de Souza Pereira.
- Data de nascimento?
- 1º. de agosto de 1941.
- Gênero?
- Indefinido.
- Como assim, indefinido? Interrompe o juiz.
- Me recuso a ter que me enquadrar em uma definição qualquer de gênero.
- Não declarado – atesta o assistente.
- Profissão e data da primeira carteira de trabalho?
- Músico, compositor, iluminador, diretor e artista, 1973.
- Muito bem. O senhor pode se dirigir ao juiz agora – conclui o assistente.
- Senhor juiz, eu gostaria de compreender o que fiz para merecer tal julgamento. Toda minha vida o que tenho feito é exercer a minha profissão e manter uma vida social discreta. Jamais cometi qualquer tipo de infração ou crime.
O juiz explica:
- Senhor Pereira, seu processo chegou até nós com uma ampla base de evidências de práticas indevidas mencionadas pelo INSS – explica o juiz – Meirinho, por favor reproduza a peça de evidência número 1, para que o réu possa compreender a natureza do seu processo.
O meirinho liga o telão suspenso na parede direita do tribunal. Um técnico de apoio projeta então um vídeo amador, gravado com um celular. Nele, Ney dá pulos e dança fazendo agachamentos em cima de um palco. A roupa brilhante de camaleão, colada, revela o seu corpo malhado. Ele flerta com o público enquanto é ovacionado. A audiência no tribunal se inquieta, o juiz bate seu martelo e grita: ordem, ordem!
Ney assiste à cena calado. Jornalistas disparam vídeos ao vivo com zooms do réu, do juiz e dos presentes.
- Senhor juiz, por gentileza, eu peço esclarecimentos. O que eu fiz de errado nesse vídeo? Qual foi a minha má conduta?
- Sr. Pereira, conforme os autos do processo, o INSS aponta que as suas atitudes encorajam a população brasileira da terceira idade a manter atividade física, social e sexual intensas. Isso tem um elevado potencial de impacto negativo na ordem social e nos cofres públicos. Na prática, sua influência pode contribuir para tornar o nosso sistema previdenciário atual inviável.
- Mas meritíssimo, isso é um tanto quanto absurdo... – protesta o réu, educadamente, enquanto olha para o juiz sem conseguir conter um sorriso no canto dos lábios.
Embora tente manter sua compostura, o juiz sente seu coração bater mais forte enquanto Ney dirige a ele seu olhar penetrante. Ele imediatamente se recorda de quando assistia o cantor dançando seminu nas noites de domingo, no Fantástico, nos idos dos anos 70.
Era pequeno naquela época, e não entendia se aquele ser fascinante era menino ou menina, mas não perdia nenhum daqueles videoteipes. Quando o via, junto com os Secos & Molhados, começava também a dançar, descalço, na frente da televisão preto e branco, até que algum adulto de plantão o repreendesse e o mandasse ir dormir.
- Meritíssimo, veja bem – fala Ney com sua voz suave e doce – tenho feito isso há cinquenta anos – dançado e alegrado o meu público. Não cometi nenhuma incitação ou ato obsceno.
- Sr. Pereira, essas são evidências apresentadas pelo INSS. Esse instituto aponta que ao longo de décadas o senhor tem tido uma conduta inadequada para a sua idade – reforça o juiz, já um tanto perturbado. Prossegue:
– Meirinho, por favor, reproduza a evidência número 2, para que o réu possa compreender melhor a natureza do processo.
O telão estampa uma foto com legenda de local e data: Rio de Janeiro, 1988. Nela, Ney aparece abraçado a Cazuza. Os dois sorriem para a câmera. Surpreendido, ele não consegue conter as lágrimas. O meirinho nota e comove-se. Ele conhece a história. Mas cumprindo seu papel, se mantém calado. O juiz prossegue:
- Essa evidência, segundo o INSS, comprova que o senhor tem historicamente incitado atitudes que pervertem a ordem social, afetando o público de idade avançada que o tem como um ídolo – essa foto é uma prova de que manteve uma relação íntima com alguém 22 anos mais novo do que o senhor.
Sem perder a calma, Ney pergunta:
- Meritíssimo, o senhor por acaso já se apaixonou alguma vez na vida?
O juiz, que amargava um recente divórcio, visivelmente transtornado, não responde.
- Meritíssimo, o senhor sabe como é um amor?... Daqueles que te arrancam um beijo da boca, daqueles que te jogam no mar de madrugada... Daqueles que te tiram o sono, a fome, a dignidade, o juízo... que te viciam completamente? Que te fazem nunca mais querer deixar uma cama, uma rede, ou vestir de novo uma roupa? Daqueles que não importa o tempo, a distância, a vida, ou a morte, jamais serão esquecidos?
Nesse instante seria possível escutar um alfinete caindo no tribunal. Ney conclui:
- Se isso é perverter a ordem social, me declaro, desde já, plenamente culpado. Vamos poupar o tempo de todos aqui.
O juiz emudece e pede cinco minutos de pausa. Os jornalistas estão em polvorosa. Os reels com a fala do réu bateram recordes de engajamento nas redes sociais.
Passados alguns minutos, inicia um burburinho que chega em um crescente, vindo do lado de fora do tribunal. As paredes começam a estremecer. Todos se olham, ninguém sabe o que está acontecendo.
- Jurei mentiras e sigo sozinho... assumo os pecados.... os ventos do norte não movem moinhos...
Como uma forma de se reconectar à própria força, e por hábito da profissão, Ney começou a cantar. A audiência se cala enquanto a porta se abre bruscamente com a força de uma horda de fãs que invade o recinto gritando: Ney, Ney, Ney.... !!!
Ao escutar a voz potente que ecoa no grande auditório, os fãs recém-chegados se auto-organizam em respeito. Logo começam a cantar junto com ele.
Os guardas, em vão, tentam deter a multidão que não para de chegar. Tudo estará estampado nas manchetes logo mais. Ney ignora e segue cantando. A multidão agora dança. O meirinho projeta o show improvisado no telão.
O juiz (ignorado por todos) declara encerrada a sessão.
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