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Quebranto

  • Foto do escritor: Maro Klein
    Maro Klein
  • 21 de nov. de 2023
  • 8 min de leitura

Atualizado: 15 de fev. de 2024




Deodora acorda assim que os primeiros raios de sol entram pela janela do quarto. Os pássaros se agitam com o amanhecer e gritam de forma estridente. Ela sempre teve problemas para dormir, desde pequena.


Deitada na cama, escuta os barulhos no jardim ao lado, os miados dos gatos, o mugido do gado, bem ao longe. Está sozinha. O marido se levantou quando ainda não era dia, já saiu para percorrer os campos.


Tem o corpo pesado pelo calor. Foi uma noite agitada, a camisola ainda úmida. Em uma fazenda em um canto remoto do mundo, sem energia elétrica e sem ventilador, é o que há, é atravessar a noite como for possível. Vários pensamentos invadem sua cabeça enquanto tenta se levantar.


Teve sonhos confusos. Sonhou com a mãe, que mora na capital e que há muito tempo a deixou. Mãe que tem feito visitas regulares ao sanatório. Eletrochoque. Doença mental? Cansaço? Um corpo cobrando o preço de anos de sofrimento?


A mãe sempre foi quieta. Afetiva, sentimental, mas quieta. Talvez não pudesse ser de outro jeito. Vítima do assédio de um homem casado, que se aproveitou da sua inocência, aos quinze anos, deu origem a uma nova e estranha família. Não sem antes ver a sua própria ser destruída. Era moça direita, e essas coisas só “se limpam” com sangue. No caso, sangue do seu próprio pai. O abusador, pai de Deodora, escapou intacto.


A mãe, tendo se tornado uma párea social, foi literalmente escondida em uma casa no meio do mato, onde se tornou amante do pai de Deodora, gerando ela e mais dois irmãos. “Ela sempre foi o amor da minha vida”, disse o pai de Deodora, que seguiu casado com a outra mulher, a oficial, e que não podia ter filhos. Então os quatro filhos foram roubados para serem dados a ela, e sua mãe caiu no mundo, vivendo distante e os visitando muito eventualmente.


O sentimento de abandono é, assim, um velho conhecido que visita Deodora regularmente. Mas ela pensa: “- não posso me queixar”. A mulher que não podia ter filhos a criou com carinho, a ela e aos irmãos. E ela era a menina dos olhos do pai. Talvez por ser tão parecida fisicamente com a mãe. Um rosto bem desenhado, traços italianos precisos, profundos olhos escuros assim como o cabelo, encaracolado. Pescoço longo. Um corpo cheio de curvas.


Esses traços levaram ao encantamento o marido de Deodora. Quando se conheceram, ele era um fazendeiro rico e solteirão. Ela tinha 28 anos, o que também fazia com que fosse considerada uma solteirona para a época. Ela não tinha planos de se casar. Casar para que? Para sofrer tendo um filho após o outro? E quem era ela? Com a sua história, que tipo de homem iria querer tê-la como esposa? Deodora nem se dava ao trabalho. Dividia o seu tempo lendo, ajudando a mãe adotiva, jogando cartas com os irmãos.


Mas um dia, ela e o marido se cruzaram em uma festa da vila local. Ele a olhava encantado, e ela ficou indignada, convicta de que ele era um homem casado. Ele tinha um rosto quadrado, um pouco calvo, olhar concentrado, penetrante, muito quieto, mas com um humor irônico. Não demorou para que namorassem. Ele a aceitou do jeito que ela era, e de onde vinha, e inteiramente. Ela o aceitou em toda a sua timidez e quietude. Era articulada o suficiente pelos dois. Além da beleza, Deodora tinha uma mente afiada, observadora, e desde sempre uma grande contadora de histórias.


Os dois noivaram em meio à grande guerra. A escassez de produtos fez com que esperassem seu fim para poderem finalmente se casar. Deodora passava os dias de espera escutando o rádio, acompanhando cada batalha e cada desenrolar da guerra. Ao fim do dia, pegava o grande Atlas e contava o que havia ocorrido ao seu pai, mostrando as manobras, território a território. Nem mesmo uma guerra é de todo mal.


Então, se casaram, e Deodora virou a senhora daquelas terras. Por meses em lua de mel, até a primeira gravidez, andavam a cavalo e cuidavam juntos da grande propriedade. Dias felizes. Noites intensas, do entardecer até a madrugada, uma fome insaciável a matar.


Não conseguiam ficar a curta distância um do outro sem que o desejo surgisse, implacável. Permitido? Proibido? Deus castiga. Ela não sabia ao certo, a verdade é que não tinha como ser de outro jeito. Dormiam exaustos, nus e abraçados, sempre assim. Mesmo passados vários anos e tendo chegado vários filhos, sempre, dormindo bem abraçados.


Agora, há sete filhos pela casa, uns já moços, outros ainda pequenos. Dois foram perdidos, um aborto de poucos meses e um bebê, de meningite. Quanta dor, quanto luto! Que corpo cansado, gravidez após gravidez, quase uma por ano, amamentação após amamentação.


Mas ela sabe que nasceu para ser mãe. Tem um amor incondicional e desmedido por cada filho, um amor que lhe foi negado. Só quem cresceu longe da própria mãe sabe o quão importante é estar ali presente, e a essa tarefa Deodora se entrega por completo.


Finalmente sua mente volta para o tempo presente e com algum custo ela se levanta. Entre as resoluções do dia, as ordens para os criados, a organização das coisas da casa, precisa enfrentar um problema.


A filha menor, de seis anos, sofre na mão da tutora. Longe de tudo, foi necessário contratar essa professora, que dá aulas particulares aos filhos. Ela se chama Clarisse, e é prima do seu marido. Uma mulher educada em colégio de freiras na capital, letrada, estudada, domina os conhecimentos escolares, o inglês, o francês, a etiqueta.


Não querem criar pequenos grosseiros e ignorantes. As horas sentadas estudando são um mal necessário. Deodora quer muito que os filhos tenham o que ela não teve. Cresceu autodidata, lendo livros aqui e ali, conseguidos a muito custo, sempre restrita aos limites do próprio mundo. Quer muito mais do que isso para os filhos.


Entretanto, a filha menor, de seis anos, é rebelde. Clarisse implica com a menina, que não para quieta, ávida por ir para o pátio brincar, pular pelas mangueiras, correr atrás dos gatos, sumir pelo jardim. Os dias passaram e a tutora desenvolveu um grande desprezo e um ódio profundo pela menina, a quem reprime e castiga com frequência.


Deodora observa, mas releva, espera que algo aconteça, que a menina seja domada ou que a tutora tenha bom senso, o que acontecer primeiro. Não quer se indispor com ninguém. Prima do marido. Ela deve saber o que está fazendo, afinal, é moça culta e educada na capital. Assim, espera, ignora o próprio instinto, pensando no futuro dos filhos. Já foi tão difícil conseguir uma professora que viesse e aceitasse ficar nesse fim de mundo.


Clarisse veio porque - segundo as más línguas - ficou grávida de um homem casado. Aborto clandestino. Forçada a sumir dos olhos da sociedade, para aplacar o burburinho. Além disso, o seu pai está falido. Mantêm só a aparência de ricos. O destino de Clarice é mais do que duvidoso.


Talvez daí tanto amargor, tanto ressentimento. Há poucas coisas piores do que uma vida praticamente sem escolhas. Além do mais - pensa Deodora - quem sou eu para me meter? Logo ela, com sua origem, tem sorte de estar onde está e poder dar um futuro diferente disso para os filhos. A menina há de virar uma moça educada, uma hora isso passa.


E assim se vão os dias. Passam os meses, passa o ano, chega novamente o verão. Uma tarde, Deodora borda, sentada à sombra do grande pé de cáqui. Sombra densa e pesada, carregada das frutas que exalam um cheiro forte, enjoativo e doce, que atrai muitas abelhas. As cigarras gritam seu canto agudo. Isso parece fazer com que até o calor aumente. Ela sua, ondas de calor vão e vem. Ela tenta a muito custo se concentrar no bordado.


De repente, a filha pequena vem correndo de dentro do casarão, escorraçada uma vez mais pela tutora. Se joga em seu colo:


- Mãe, eu não aguento mais, mãe...


Deodora a consola, faz um carinho no seu cabelo. Levanta os grandes cachos da menina para ajudar a passar o calor. Ao fazer isso, seu rosto se enche de pavor - os cabelos da menina estão ficando brancos... brancos! Cachos e cachos que parecem estar tomando conta, desbotando o amarelo infantil. Deodora não sabe o que pensar e nem o que fazer. Quando consegue reagir, chama Cândida, empregada da casa, babá das crianças.


Cândida sempre esteve ao seu lado, desde o primeiro minuto em que Deodora pisou na fazenda. Descendente dos nativos da fronteira, a “bugra” ajudou a criar o marido, é parte inseparável e pilar da casa. Fez dois de seus partos, quando não houve tempo para ir para a cidade. Cuidou de cada pequeno, com seus chás, unguentos, benzedeiras. Trata Deodora como filha, e aos seus filhos, como netos.


- Cândida, pelo amor de Deus, olha isso... – Deodora mostra os cachos de cabelos brancos da menina.


Cândida franze a testa, se aproxima ainda mais para ter certeza do que está vendo, e fica igualmente apavorada, como se tivesse visto um fantasma.


- Dona Deodora... Isso é quebranto, Dona Deodora... Isso é quebranto... – o rosto enrugado da “bugra” se enche de preocupação.


Deodora então percebe do que se trata. A menina sendo destruída pelo ódio gratuito recebido por meses e meses a fio por parte de Clarisse. Os gritos, as batidas com régua nas suas mãos, os castigos, o constante olho maligno e invejoso da tutora sobre a menina.


A indignação toma conta de Deodora e sua cabeça parece girar. Quanta dor... Como pôde fechar os olhos para isso? Como pôde ignorar o grau de sofrimento de sua filha, logo ela!


O marido está longe, do outro lado da propriedade, só volta daqui a dois dias. Prima do marido. O que fazer? O calor, o cheiro do cáqui, a menina chorando em seu colo, a tutora lá dentro seguindo a dar aula para os outros, a fala certeira de Cândida – é quebranto.


Deodora respira, se levanta, coloca gentilmente a menina na sua cadeira. Ajeita o vestido, molhado de suor, que colou em seu corpo. Seca as lágrimas que escorrem sem que consiga segurar. Vence a caminhada no sol da tarde escaldante do pátio e entra devagar na sala do grande casarão, onde Clarisse segue a aula.


Por um minuto, seus olhos ficam cegos do contraste com a luz do sol. Então observa a sala abafada, os filhos todos sentados em torno da mesa, um silêncio de velório, a fala estridente da tutora:


- Lundi, mardi, mercredi, jeudi, vendredi, samedi et dimanche, répétez après moi!


Deodora observa a cena, mais uma vez respira fundo. De cima do longo pescoço, os olhos negros incendiados, mas ainda assim sem erguer a voz, fala:


- Clarisse, junte todas as suas coisas, agora, e vá embora. Eu não quero nunca mais que você coloque os pés nesta casa. Nunca mais. Vá. Agora.


Clarisse arregala os olhos, mas não fala uma palavra. A força do olhar e da voz de Deodora tomou conta inteiramente da sala. Ela não ousa contestar. Também sabe que de nada vai adiantar. E, no fundo, sabe muito bem o que fez para merecer tal tratamento.


Lá longe, nos galpões, as ordens já chegaram. À sombra do cinamomo o motorista prepara o carro, às pressas. Há um trem partindo da cidade no fim da tarde e a tutora será colocada nele, para a capital e para nunca mais voltar.


Poucos minutos depois, Clarisse deixa o casarão carregando uma pesada e mal arrumada mala. Sai com a cabeça baixa, não olha para trás. O sol implacável faz com que o fardo seja ainda maior. Pelos vãos das grandes janelas de vidro da sala do casarão, as crianças a observam, quietas e surpresas. Nunca viram a mãe fazer algo parecido.


Cândida se apressa a benzer e a purificar a casa, lavar cada roupa de cama e objeto que a outra tocou. Deodora volta para a sombra do pé de cáqui. Toma a filha pequena no colo. A abraça longamente, beija os cabelos brancos da menina com todo amor possível e lhe diz:


- Acabou, minha filha... acabou... A tua mãe está aqui contigo.


 
 
 

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