Presta atenção, senhora!
- Maro Klein
- 1 de mai. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 25 de mai. de 2024

Mais um final de tarde de trânsito nervoso. Sexta-feira. Todo mundo estressado e de saco cheio da semana. Ela para em uma cafeteria, ávida por uma dose massiva de cafeína. Só uma parada rápida, antes de gravar o próximo vídeo. A equipe já a aguarda no set, com o script preparado. Rooftop. Já está com os produtos todos no carro. Acaba de sair de mais uma sessão de ultrassom microfocado, botox e aplicação de fios de PDO. Sente as agulhadas ainda doendo pelo rosto, mas tudo bem. Já está acostumada. A dor é por uma boa causa. Em vinte dias estarei maravilhosa, pensa.
A rede de clínicas de estética onde acabara de fazer o tratamento patrocinará o vídeo. Oferecem um ambiente de puro luxo. Qualquer mulher que esteja lá, sente que venceu na vida. A sede fica no alto de uma torre na avenida mais esnobe da cidade. Tudo imaculado. Móveis de luxo na recepção. Obras de arte nas paredes. Tudo em combinações de cinza gelo e rosa pálido. Buffet aberto o dia todo. Flores frescas. Um recipiente de cristal para água saborizada, só que cheio de água com colágeno, também rosa. Colágeno. Todas se servem, achando aquilo normal.
Já vai pensando em como irá dirigir o vídeo. Contará toda a sua experiência com o tratamento. Fará o unpack dos produtos para o skincare pós aplicação. Tudo certo. As seguidoras vão amar. A clínica ficará satisfeita. Ganhará várias outras aplicações grátis, sem falar no valor do patrocínio. Já pensa em como investir o dinheiro.
Entorna o café, checa a hora, meu Deus, tenho que ir. Entra no carro rapidamente. O estacionamento do café está lotado, mal há espaço para manobrar. Mas ela confia nos muitos sensores do seu Porsche Carrera e dá uma ré sem piedade. Os sensores zunem alto, ouve um baque, seu coração acelera. Para.
Pelo retrovisor, vê a loira se aproximando. Não tem tempo de entender exatamente o que houve, e a mulher já está com a cabeça quase dentro do seu carro, gritando:
- Presta atenção, senhora!! A senhora bateu no meu carro!!
Ela tenta entender qual parte daquilo tudo a agride mais. Senhora? Essa loira está mesmo falando comigo? Como assim, senhora?
O gerente do café vem lá de dentro para ver o que aconteceu. A loira grita muito. Tem por volta de trinta anos, grandalhona, enfiada em uma roupa de academia colante, brilhante. Ela assiste a discussão entre a loira e o gerente, sem reagir. O gerente tenta apaziguar as coisas. Ela só vê as mãos da loira balançando no ar.
Então, entra no café, pega um guardanapo, anota um número. Toma. Entrega para a loira. Meu corretor de seguros. Vou pagar tudo. A loira se cala, o gerente também. Ela vira as costas, entra no Porsche, vai embora.
Foi bem a tempo. A tempo de parar no próximo sinal, para poder começar a chorar. As lágrimas vêm com tudo, mas ninguém vai notar. Sexta-feira, trânsito pesado, todo mundo correndo para casa, ou para o próximo bar.
Trocando a rota, vai para casa. Entra na grande sala, mergulhada na escuridão. Manda uma mensagem no grupo da equipe, cancelando a gravação. Dá uma desculpa esfarrapada, amanhã gravamos. Aproveitem para descansar. Emoji de beijos.
Abre uma garrafa de vinho, se joga no sofá. Bebe lentamente, olhando para o vazio. Depois de algumas horas, se levanta. Ainda no escuro, vai até o quarto, passa então pelo vasto closet. Entra no banheiro. O set lá está, sempre montado. Quanto mais espontâneo e casual, melhor. As seguidoras adoram. Se identificam muito.
Pega um lenço, retira toda a maquiagem, depois os cílios postiços, as lentes de contato. Observa seu rosto no iluminado espelho de aumento. As rugas nos cantos dos olhos avançam, a despeito dos tratamentos. As raízes brancas dos cabelos se insinuam, menos de um mês depois da última coloração.
Tira todas as joias e então as roupas. O soutien de sustentação que lhe incomodou o dia inteiro deixou suas marcas. Olha-se no espelho maior. Os seios já não são tão firmes, assim como os braços, apesar de tanta musculação. Olha para seus joelhos. Eles estão com pequenas dobras. Meu Deus, até os joelhos...
Entra para dentro da banheira, senta-se, liga o chuveiro acima de si. Abaixa a cabeça, olhando por entre as pernas. Deixa que a água escorra pelas costas.
Toda a sua vida passa então por sua cabeça. Aluna brilhante. QI 130. Especialista em finanças, tinha tudo para uma carreira como alta executiva. Mas tivera o azar de nascer bonita. Nunca valorizada pelo seu trabalho, mas constantemente assediada. O mundo das finanças é um mundo de homens. E nada, nada os irrita mais, do que uma mulher mais inteligente do que eles. Se ela for bonita, então, imperdoável. Ela aprendeu isso logo cedo.
Depois de insistir por alguns anos, desistiu de uma carreira corporativa. Decidiu criar o próprio negócio. Analisou a fundo as tendências de mercado. Cosméticos, segmento que cresce ano a ano, mesmo com eventuais crises econômicas. Mulheres cada vez mais inseguras, massacradas pelas pressões das redes sociais. É lá que elas tentam achar uma saída. Uma solução rápida. Na privacidade dos seus banheiros, com o celular em cima da bancada, que acumula cada vez mais produtos. Assistem vídeos de alguns minutos de “autocuidado” depois de dias cada vez mais massacrantes. Todas ávidas por informação.
Ela fazia aquele trabalho com facilidade; um QI alto devia servir para alguma coisa, afinal. Ela sabia entender o que havia de mais avançado, a última tecnologia, os melhores produtos, as melhores clínicas e spas. Aprendeu sobre química, dermatologia, marketing digital. Construiu uma reputação imbatível. Conquistou um público fiel. As seguidoras a reverenciavam. Todas queriam ser como ela.
Quando sai de dentro da banheira já é madrugada de sábado. Sobe para a cobertura, onde entra na biblioteca, único lugar da casa jamais filmado. Passa pelas prateleiras. Livros de finanças, marketing. Livros de viagem, de todos os lugares pelos quais passou. Primeiro de mochila, depois em spas de luxo. De gravação em gravação. Olha seus livros de literatura, muitos há alguns anos esquecidos. Yourcenar, Beauvoir. Senta-se na poltrona de veludo, ao canto. Fica ali por algumas horas, quieta, novamente olhando para o vazio.
As luzes do início de um novo dia já se pronunciam ao longe; ela as percebe através das portas de vidro da cobertura. Levanta-se, caminha até elas para abri-las e olhar o nascer do sol, algo que sempre amou.
Sai para a área externa. A visão é espetacular. Apesar de não ter dormido, se sente estranhamente renovada. Fará um café. Hora de mudar a rota novamente. Dezenas de ideias de conteúdos diferentes borbulham na sua cabeça. Tem outras coisas a dizer. A personagem que sustentou até agora, essa sabe que não lhe cabe mais. Sabe que ela é pesada demais para seguir carregando. Quer falar sobre outras coisas, e imagina que sim, haverá muitas mulheres como ela, querendo ouvir, querendo talvez, trocar. Sabe exatamente o que deve, o que deseja fazer.
Caminha de volta para a área interna, quando então, distraída, sem se reconhecer, se enxerga no reflexo impreciso das portas de vidro. Uma senhora de calça jeans, moletom, zero maquiagem, cabelos despenteados. Acha graça de si mesma por não ter percebido que sim, era ela mesma.
A manhã está um pouco fria. Então, já entrando para dentro de casa, quase que acidentalmente, se abraça.
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