O Magnífico agora
- Maro Klein
- 8 de fev. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 15 de fev. de 2024

Já passava das onze horas quando ela saiu de casa. Chapéu, óculos escuros, biquini. Canga jogada nas costas. Eram só duas quadras até o mar, em uma praia quase deserta.
A ressaca da noite anterior ainda cobrava seu preço. Tinha a sensação de ter levado uma coronhada na nuca, mais ou menos. Felizmente os grandes óculos de sol disfarçavam as olheiras (ainda que não houvesse ninguém reparando). “Chega de tanto espumante, que bebida mais traiçoeira!” - pensou. Cheia de doçura e de borbulhas, te envolve, te empolga, se infiltra e posteriormente te derruba. Parece um malogrado caso amoroso. Chega. Mais um item para cortar da lista das coisas “pós-cinquenta”, concluiu. Mas claro, nunca diga nunca... Largar é um bom plano, até a próxima ocasião.
Havia ficado em casa sozinha na noite anterior, escrevendo e bebendo até alta madrugada. Que combinação. As amigas haviam convidado para sair. Festa 80 e 90 – “vamos, é do nosso tempo!”. Ela recusou. “Meu tempo é agora, respondeu”. Não tinha muita certeza a respeito disso, mas enfim.
Mais valia ficar em casa sozinha, na santa paz, bebendo e escrevendo. Na sacada da casa, com as cortinas brancas balançando, a brisa do mar noturno invadindo. Uma música tocando ao fundo. Só dava elas: Nina Simone, Janis Joplin, Ella F., Madonna e outras divas. 80, 90, 60, 50, tudo está valendo. O tempo é relativo, dizem.
Vai ser só uma caminhada rápida, planejou - para tentar espantar a ressaca. Depois, comer alguma coisa, terminar de escrever e se concentrar no curso de meditação, que agora chegava quase ao fim. Trinta dias. Meio que se apaixonara secretamente pelo instrutor. Um californiano cinquentão como ela. Pesquisou sobre ele na internet. Achou algumas fotos: levemente careca, barbudo e com cara de nerd. Bem seu número. Mas o melhor dele eram os olhos. Olhos doces, inteligentes e brilhantes. A voz... há, a voz... sexy como o diabo.
Só de ouvir a voz dele, imediatamente se acalmava. Ia conduzindo as sessões e usava exemplos pessoais para apoiar as reflexões na meditação guiada. Assim, descobrira várias coisas em comum com ele. Era impulsivo. Agitado e ansioso. Tinha problemas em gerenciar sua raiva. Além de terem tudo isso em comum, ele tinha legitimidade total para lhe ensinar a meditar – concluía - pois quem não assume abertamente seus pecados e imperfeições não tem calibre para ajudar alguém a buscar alívio. Com o passar dos anos, aprendera a confiar mais em almas perturbadas como a dela.
Sim, ele a acalmava muito. Mas qual é o nível de carência afetiva de alguém que se apaixona por um instrutor de meditação de um aplicativo? “Se houver uma escala para medir isso, certamente devo estar no ponto máximo”. Mas seguiu. “Não vou me julgar”, pensou – já aplicando algo que havia aprendido no curso: “tudo pertence, tudo pertence”!
O sol já começava a queimar a sua pele sem protetor quando chegou à praia. Sentiu a brisa a envolvendo, a areia macia e molhada sob os pés. As ondas largas que invadiam, aquecendo a água rasa no calor do sol.
Caminhava rumo ao norte e o sol quase a pino formava uma trilha luminosa na areia, e era como se as luzes dessa trilha se acendessem ao pisar. Eventualmente parava, e ficava na companhia de algumas garças que pescavam, atentas. Conseguiam ficar muito próximas. Nenhuma era ameaça para a outra. Todas faziam uma respeitosa reverência ao mar.
Lembrou da voz do instrutor de meditação – ache a sua base, ache a sua base. Minha base, pensou ela, é essa maré, aqui e agora. Nada além disso. As ondas que vão e que vem. Caminhava tocando a espuma com a ponta dos pés, observando os objetos aleatórios que emergiam: uma grande alga; uma água-viva já morta; um pedaço de madeira; uma caravela de azul brilhante; um marshmallow azul e branco – há pouco havia sido dia de Iemanjá e algumas oferendas ainda eram devolvidas à areia.
Apesar da ressaca, sentia como se estivesse nascendo de novo. Na medida em que a sua consciência se ampliava, se parecia com aquelas crianças que brincam na beira da praia pela primeira vez. Poucas coisas são mais maravilhosas do que observá-las. Não sabem exatamente o que é aquilo. É agitado, é molhado, é empolgante.... Vou ou fico? Posso ou não posso? É permitido ou não é? É perigoso? É seguro? Assim como elas, experimentava novas sensações.
Buscava se concentrar nas ondas, pois o mar sem fim é ardiloso; ele facilmente faz vir à tona uma série de sentimentos e lembranças, como destroços de um grande navio. Às vezes, as lembranças são boas, como tesouros, espelhos e joias de um naufrágio, lembranças de grandes afetos. Mas as vezes, a maré traz memórias dolorosas. Memórias de dias difíceis, de dores, de perdas, de lutas, de fugas, de luto e de rejeição.
“Mas o bom é que, com o mar, nenhum dia é igual” – pensava – era isso justamente o que mais gostava. Num dia agitado, no outro, calmo; em um, a maré sobe, noutro ela desce. A praia fica limpa, noutro está suja; o vento esculpe texturas incríveis na areia, e lixa as nossas pernas. Algumas vezes o reflexo do pôr do sol é azul, as vezes é magenta.
Caminhou e perdeu a noção de distância. O marco de tempo se revela na queimadura que nitidamente já se faz presente em suas coxas. “Vou pagar caro por isso”. Mas segue. Sente que começa a escrever um novo capítulo em sua vida. Há muito custo, fez as pazes com seu passado. Tem alguns poucos planos incertos para o futuro e muita, muita vontade de viver. Dança ligeiramente entrando dentro da água, uma dança de felicidade genuína.
A neblina agora está densa, e o sol, alaranjado. Azuis e vermelhos se destacam dos guarda sóis e das roupas dos poucos banhistas. Sente como se caminhasse dentro de um quadro impressionista, aqueles que tanto adora. A paisagem viva da praia e do mar é isso – uma obra prima, que se move e que se pinta, na medida em que se caminha. “Mas chega de divagações” - é hora de voltar para casa.
No caminho de volta, rente à orla, segue fechando o seu balanço de perdas e ganhos. Percebe que já recebeu muitos rótulos, cargos, títulos, julgamentos alheios. Seus próprios julgamentos. Muitos. Muitas cobranças. Mas, na medida em que caminha, se dá conta como isso tudo vai agora ficando para trás.
Derruba sua própria tese de carência afetiva – não precisa de ninguém ali. Nem amores passados, nem presentes, nem futuros. Tampouco do instrutor de meditação – ri por dentro. Aquele é um momento de felicidade perfeita – e está inteiramente sozinha.
Apenas a menina que já foi continua com ela. Imagina que vem agora, em seu colo, abraçada a ela, os pés pendentes ao redor de seus quadris, dormindo, enrolada na canga, sendo embalada pelo seu caminhar. Cansada, depois de tanto brincar na areia e na água. Cantarola baixinho, para que ela siga dormindo e tendo seu merecido descanso. Sente que nada de mal pode acontecer. Ambas estão seguras agora.
São, as duas, grandes exploradoras, duas grandes aventureiras. Sempre foram, sempre serão. Concentra-se mais uma vez em sua base: nas ondas que vem e que vão, e só naquilo que realmente importa: o magnífico agora.
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