Do que ficou.
- Maro Klein
- 4 de abr. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 25 de mai. de 2024

Ela chegou em um dia de vento norte. O sol alaranjado da metade da tarde invadia cada fresta da cobertura precária da rodoviária local. Soltou a mala no chão e não pôde segurar um forte suspiro de resignação. Entrou no primeiro táxi que encontrou, acordando o motorista, e então tomou seu rumo.
Os irmãos a tinham chamado com urgência.
— Vem que a mãe precisa de ti — disse o mais novo. Deve estar ficando caduca. A vizinha tem dito que ela anda falando muito sozinha. Tem até conversado com o pai pelo pátio, vê se pode.
Ela foi. Deu uma desculpa no trabalho, negociou a entrega de projetos e assim voltou, tantos anos depois, àquela cidade. Não teve como não ceder à pressão, já que os irmãos haviam olhado pela mãe nos últimos vinte anos, desde que o pai morrera.
Chega em frente ao portão de entrada da velha casa da família. Bate palmas, como de costume, mas ninguém atende. Uma vizinha, sempre vigilante das coisas da rua, vem em seu socorro.
— Há quanto tempo! Quase não te reconheci! Olha... a tua mãe deve estar sesteando, mas não te preocupa, eu tenho uma cópia da chave, espera que eu vou buscar.
Desvia-se das muitas perguntas que a vizinha lhe faz, enquanto entram pelo pátio, rumo à casa, que fica ao fundo, protegida pelos altos muros cobertos de verde. Passa por duas cadeiras de alumínio da década de 70, que aguardam em frente à porta da sala. Em uma delas, novelos de linha e algumas agulhas, as coisas da mãe. Na outra, um maço de cigarros. Estranho.
Tendo se livrado da vizinha, finalmente entra. A casa se encontra mergulhada na penumbra. Todas as persianas e cortinas estão fechadas, tentando protegê-la do calor daquele janeiro.
Caminha devagar pelo corredor de piso de madeira, que não deixou de fazer o costumaz barulho. Espia pela porta do quarto principal. A mãe dorme de bruços, um tanto suada, mas em sono profundo. Que bom. Respira aliviada. Terá um tempo para voltar ao próprio eixo depois da longa viagem.
Vai até a cozinha. Encontra uma xícara com vestígios de café preto sobre a mesa. Uma bituca de cigarro ao lado. Novamente o estranhamento. Quem teria andado por ali? Nem a mãe nem os irmãos fumam. A mãe só toma chá. Passa um café para si. Quente, forte, doce. O saboreia. Fica pensando no que fará a seguir.
Após a morte do pai, achou que a mãe não sobreviveria sozinha. Sempre submissa e dependente daquele homem. Sempre fiel e apaixonada. Sempre fazendo vistas grossas a tudo. No entanto, contrariando o prognóstico, ela seguiu em frente. Reclusa entre os muros da velha casa, preservando tudo intacto. Quieta, como de costume. O que estaria acontecendo agora?
Vai então até seu antigo quarto de solteira, como quem é transportada em uma máquina do tempo. A velha colcha rosa, desgastada, ainda cobre a cama. O pôster de Cazuza segue na parede, já um tanto desbotado. Uma pilha de livros esquecidos está sobre a mesa de cabeceira. Morangos Mofados.
Olha-se no velho espelho de pé, com moldura de madeira. Subitamente, escuta de novo aquela voz atrás de si, lhe dizendo: “não adianta você ficar se arrumando, você é feia mesmo”. Sente a mesma vontade de chorar, sem conseguir. Sempre ele. Vigiando cada passo seu. Naquela época, obcecado com seu corpo adolescente “você vai ficar grávida, vai arruinar a própria vida”. Proibindo qualquer namoro. Sufocando-a lentamente, dia após dia. E a mãe, a mãe sempre concordando com tudo.
“Chega!” – diz a si mesma. “Passou”. É outro o corpo que ela enxerga no espelho agora. É o corpo de uma mulher adulta. Uma mulher que viajou pelo mundo. Uma mulher dona de si, argumenta por dentro.
Deita-se sobre a antiga cama de solteira e abraça a almofada que ali estava. Mas não consegue impedir a lembrança das agressões. As marcas dos golpes que ainda lhe doem pelo corpo, pedindo para serem vistas, mesmo depois de tanto tempo.
De repente, escuta passos pesados no corredor e, por alguns instantes, fica completamente paralisada. Sabe muito bem quem pisava naquelas tábuas daquela forma. Com muito custo, sai à porta do quarto e olha o entorno. Ninguém. Tudo segue em silêncio. “Devo estar ficando louca também”, pensa. Exausta da viagem, volta para a cama, onde cai em sono profundo.
Ao acordar, o sol já está baixo, o calor arrefeceu. Levanta-se e sai pelo corredor, a procurar pela mãe. Enxerga a figura de um homem em frente ao quarto principal. Pensa ser o seu irmão mais velho.
O homem se volta para ela.
Então, todos os pelos do seu corpo se arrepiam. Sente uma vertigem, uma náusea profunda, diante do inimaginável que acaba de acontecer.
É ele.
O pai, novamente diante de seus olhos. O pai, com a mesma imagem que guardou dele quando ela era ainda criança. Ele, com seus cabelos negros, suas mãos fortes, seus braços queimados pelo sol, seu cheiro amadeirado. Treme diante da sua voz grave, que lhe diz:
— Eu sabia que um dia você voltaria ...
Está muda. Encosta-se na parede, começa a andar de costas, tentando se afastar. Se vê tomada pelo medo, um medo que sufocou durante anos. O medo de ser agredida novamente. O medo de voltar para dentro daquele pesadelo. Com muito custo, balbucia:
— Mas... mas... você morreu... eu o vi morto, eu sei que morreu! Como? Como? ...
— Tua mãe não estava bem. Precisou de mim, chamou por mim, por isso eu voltei. Só ela tinha me visto, até agora.
— Mas por que... por que você...
— Porque você também me chamou.
— Meu Deus!! Eu não... Eu não te...
Ele dá um largo passo na direção dela, cujo rosto está desfigurado de pavor.
Ela dá mais um passo para trás, olha através do corredor, grita em vão pela mãe.
Então, ele avança e a abraça de imediato, e por completo. Ela sente a força dos braços dele a envolvendo. Apavorada, tenta reagir, o empurra, sem conseguir se desvencilhar.
Sente-se pequena. Pequena de novo.
Pequena, voltando ao colo dele.
Pequena, correndo para encontrá-lo quando ele chegava em casa depois das longas jornadas de trabalho; pulando em volta do seu pescoço.
Pequena, como quando era inocente. Como quando ainda se sentia amada por ele. Como quando ainda acreditava que, envolta nos seus braços, nada e ninguém no mundo poderiam lhe ferir.
Ambos emudecem. Não se movem. Nada falam. Ela então chora, um choro guardado por muitos anos. Quer entender tanta coisa; quer entender por que ele fez com ela tudo o que fez. Mas, ao mesmo tempo, e sem saber por que, sente que não precisa saber e nem entender nada.
Vendo que ela chora, ele também deixa as lágrimas correrem livres, contrariando o que sempre dizia — que homem não chora.
Perdem a noção do tempo, perdem a noção do espaço, dentro daquele abraço. Então, ele a conduz de volta até seu antigo quarto de solteira. A leva até a cama, pede que descanse. Que durma mais um pouco. Que fique tranquila, sabe, as coisas são difíceis; a vida não é fácil, mas tudo vai ficar bem.
Ele desaparece de novo pelo corredor. Ela escuta o barulho dos passos diminuindo um após o outro. Adormece.
.....
Acorda na manhã seguinte, depois de um sono como há muito não dormia, sentindo-se plenamente descansada. Sente o cheiro de café recém passado vindo da cozinha. Como quer uma xícara! Forte, quente, doce.
Ao chegar até lá, encontra a mãe à mesa; ela levanta-se e vai ao seu encontro. Sentam-se em frente uma da outra. A mãe a serve e toma, em seguida, o seu chá. Ela bebe seu café devagar, e ficam em silêncio, sorrindo.
As duas olham então para o lugar ao lado delas, notando a xícara com vestígios de café, recém tomado, e a bituca de cigarro, ainda quente.
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