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Devolva-me

  • Foto do escritor: Maro Klein
    Maro Klein
  • 1 de nov. de 2024
  • 4 min de leitura



Era uma tarde de início de primavera quente e chuvosa em Porto Alegre. Estacionou o carro em uma vaga de rua e, como de costume, não pagou o parquímetro. Gostava de brincar de roleta russa da multa.


Cansada, saiu mais cedo do trabalho para consertar a armação dos óculos. Aquele, uma das coisas quebradas na briga da despedida.


- Filho da puta, desgraçado, te fode, acabou!


Sentenciou, levantando-se, nua, da cama, para ir e nunca mais voltar, mas sem querer, na saída derrubou os óculos da mesinha de cabeceira. Ainda bufando, juntou tudo: o corpo, ainda suado da derradeira transa, a roupa, a bolsa, a autoestima e o óculos, partidos. Há uma semana lá estavam eles, em péssimo estado, se sustentando apenas pela improvisada fita isolante.


Parou debaixo da marquise e acendeu um cigarro. Sentiu o cheiro da fumaça que se misturava a uma tênue névoa da chuva que ainda levantava vapor do asfalto. Ficou por um instante em meio aos que ali passavam, indiferentes.


Amassou o cigarro na lixeira de aço e entrou no prédio, galeria tradicional no coração do Moinhos de Vento. Já era em torno de 17h. Tirou o cartão da bolsa, para encontrar o número da loja comercial. Como de costume, se confundiu na numeração, mas finalmente encontrou o pequeno negócio de consertos. Devolvemos seus óculos em até 1h. Perfeito, era todo o tempo que tinha.


Atendida gentilmente pela moça de cabelos escuros, longos e lisos, encaminhou o conserto e sentou-se na cadeira de espera. Sem os óculos, não havia distração: nem celular, nem revista, nem nada. Restava somente o desafio da paciência. Preparou-se, resignada, para a sessão de tortura de ter que ficar sozinha com seus próprios pensamentos.


Via, pela parede de vidro da loja, somente as sombras do que se passava do lado de fora, no longo corredor no interior da galeria. Em frente às lojas, várias banquinhas vendendo mercadorias aleatórias: semijóias, artesanato, roupas para pets. Em meio a elas, uma pequena estação onde uma moça tocava teclado, aquele som gelado e seco que remetia aos anos 80.


Fixou então seu olhar embaçado sobre as próprias pernas e ensaiou um exercício de mindfulness para fugir a todo custo de si mesma. Buscou como âncora o famigerado som do teclado. Uma música acabara, e outra iniciava. Levou um tempo para distinguir qual era ela... “Parece a... mas acho que não... será que é? Não pode ser...” Então, finalmente, descobriu: “Devolva-me”.


Já estava achando surreal o universo paralelo no qual havia se metido, em que a bela música de Adriana Calcanhoto soava naquela galeria obscura, por um teclado de timbres duvidosos, quando o homem entrou na loja. A essa altura tinha perdido qualquer esperança no mindfulness ou em fazer qualquer coisa que lhe agregasse. Resolveu aplacar o tédio bisbilhotando a vida alheia.


- Boa tarde – disse o homem, largando o guarda-chuva ainda molhado no canto da loja, secando os pés e entrando.


- Boa tarde – respondeu a atendente.


- Me diga uma coisa, vocês têm um setor que costuma guardar os óculos que as pessoas mandaram consertar, mas não vieram mais buscar?


- Sim, temos, chama-se setor de produção.


A essa altura seus ouvidos estavam muito atentos; “Devolva-me”  já soa distante.


- Pois é – continuou o homem, pelo vulto, um senhor grisalho – eu procuro por uns óculos, e inclusive vim aqui pra pagar o conserto dele, uns óculos que minha mãe mandou arrumar, mas não buscou. Isso tem mais ou menos uns três anos, foi durante a pandemia.


- Claro – diz a moça – como ele é? Vou anotar e pedir que procurem.


- Óculos azul, armação de madeira.


- Certo, estou anotando. Algo mais sobre ele?


- Sim. Sabe, minha mãe mandou para o conserto, mas acabou falecendo.


A moça e ela levantam os olhos para o homem. Ela novamente só vê seu vulto, mas não emprega esforço algum em esconder o espanto. O homem segue:


- Então, depois que minha mãe morreu, meu padrasto vinha buscar, mas ele também faleceu.


Silêncio absoluto na sala.


- Quero os óculos de volta por razões sentimentais, sabe.


- Sei sim, claro – diz a moça de cabelo escuro, liso, longo, empática.


“Sei sim”, pensa ela. “Sei sim”.


Depois de passar seus dados de contato, o homem agradece, vira as costas, vai embora. “Devolva-me” já não toca mais.


Ela permanece ali, olhando para as próprias pernas, ainda de boca aberta. São tantas coisas que se passam por dentro que não consegue distinguir. Imagina a história do homem e da mãe em sua cabeça. Que coisa mais triste perder a mãe, assim. E o padrasto? Provavelmente a mãe era o grande amor da vida dele, morreu de desgosto. E os óculos azuis? Em alguma prateleira, esperando pela dona. Foram-se os dedos, ficaram os anéis. Como é que o mundo segue assim, enquanto a gente se vai?


Suas especulações sobre a história do homem se misturam à sua própria história, com flashes da briga. “Como é que eu fui sofrer por aquele traste? Como é que eu tô perdendo meu tempo, minha vida, assim?” Estranhamente, algo se organiza. Devolve-se a si mesma, depois de tudo.


Mais tarde, cumpridor do prazo, o técnico alcança os seus óculos, consertados, através da escada. Ela analisa a armação com a ajuda de uma lupa, sempre oferecida para o controle de qualidade pelos clientes. A marca da quebra é quase imperceptível.  Os coloca. Como é bom enxergar de novo.


Satisfeita, paga e agradece muito à atendente, a qual baixa a grade de aço barulhenta atrás dela, assim que sai. A tecladista toca a última música, pois a galeria também fecha. Ela se esforça novamente, mas, desta vez, não distingue qual seja. Só sabe que é uma música em um tom alegre.


Sorri de leve, e, como sempre, segue em frente.

 
 
 

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