Depois da última noite de chuva[1]
- Maro Klein
- 16 de nov. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 20 de nov. de 2024

Ainda é possível sentir a umidade no ar, depois da tempestade da madrugada. Mas a manhã de feriado é luminosa. Céu azul perfeito, quase sem nuvens, quando as duas saem de casa.
Uma tem por volta dos cinquenta anos. Rosto acabado da semana pegada de trabalho. Mochila com o computador de última geração. Óculos Dolce & Gabbana, para encobrir as olheiras. A outra tem por volta de 17. Camisa de flanela, calça jeans e tênis All Star vermelho. Mal penteou os cabelos, que vão quase até a cintura.
Entram no carro em silêncio, como se fossem, cada uma, viajar sozinha. A adolescente se atira no banco do carona. A mais velha organiza tudo meticulosamente. Nas portas da frente, água mineral com gás; celular carregando, checa as malas. O único cuidado que as duas dividem são com os dois gatos, que viajam em suas caixinhas, presas ao cinto de segurança, no banco de trás.
Já estão na autoestrada, completamente engarrafada. A cidade inteira, assim como elas, decidiu fugir para a praia. A adolescente, como sempre, escolhe a playlist: Legião Urbana. Nada pode ser mais destoante do que Andrea Doria e Daniel na Cova dos Leões naquela quase que irritante manhã de sol.
A adolescente ainda está incomodada. Há tempos trancada em sua jaula particular, foi cutucada a sair um pouco para fora pela mais velha, que não entende como alguém tão jovem pode ter tamanha introspecção, desconfiança e ira. “Minha raiva seria capaz de mover o mundo” – certa vez deixou escapar.
A mais velha, por mais que tentasse, não conseguia agradá-la. Mesmo proporcionando a ela todo o conforto, acesso à melhor educação, viagens pelo mundo, a garota seguia irredutível. “E diamantes de pedaços de vidro...” – a voz grave e doce de Renato Russo segue ao fundo.
Cansada da situação, após anos de tentativas de aproximação, a mais velha aproveita o trânsito parado para arriscar um mínimo diálogo:
- Eu queria falar contigo.
- Não tô a fim – diz, jogando os All Star sujos sobre o painel do carro, o que faz com que a mais velha respire fundo.
- Você sabe que não podemos seguir assim.
- Podemos, sim, estamos vivendo assim há tempos.
- Eu juro, queria muito te entender. O que eu posso fazer para te ajudar?
- Você sabe muito bem. É óbvio.
- Não, para mim não é óbvio. Por favor, fala comigo.
A adolescente se mexe no banco, já irritada, e fixa o olhar para a paisagem ao lado. Depois de um tempo, finalmente, vendo que a mais velha divide o olhar entre ela e a estrada, resolve falar:
- Você sabe que nem você e nem ninguém estava lá pra me ajudar quando aconteceu.
- Eu sei – a mais velha responde – e eu sinto muito por isso, mas eu tô aqui contigo; o que nós podemos fazer de agora em diante para que você se sinta bem? Pra que consiga deixar tudo isso pra trás?
- Tu sabe bem que eu não acredito.
- Eu sei. E eu entendo. Eu sei que você teve que ser muito mais forte do que deveria. Não tinha que ter sido assim. Só Deus sabe como eu queria que tivesse sido diferente. E eu sei que não há como voltar e mudar isso. Mas eu estou aqui para te proteger agora. Não vai acontecer de novo. Nunca mais. Eu não vou deixar.
“Mas não, não vá agora, quero honras e promessas, lembranças e histórias” – diz Renato, colocando lenha na fogueira.
- Mentira, tudo mentira! – A garrafa de água mineral com gás na porta é jogada com tudo contra o vidro de trás do carro, fazendo com que a mais velha zigzagueie o carro na estrada. Buzinas. Os gatos miam alto.
- Por favor, querida, deixa eu te ajudar.
- Querida o caralho!! Pega essa tua ajudinha de merda e enfia no...
A mais velha respira fundo pra retomar a calma, esperando por mais agressões, quando, de repente, acontece. A adolescente se dobra sobre as próprias pernas, os longos cabelos se esparramam pelo chão do carro.
A mais velha tenta manter a atenção na direção, mas percebe que a outra chora, chora muito alto. Uma mão segura o volante, a outra acaricia as costas dela, tentando acalmá-la. O choro ecoa no carro fechado, abafado apenas pelos gatos que miam baixinhos, assustados.
A mais velha, sentindo o peso daquela dor, para no primeiro refúgio que encontra na estrada. Carros ao lado zunem apressados enquanto estaciona debaixo de duas grandes árvores que agora assumem o papel de testemunhas silenciosas. Ficam inertes por um tempo. Ambas precisam. Até que a mais velha quebra o silêncio:
- Eu sei muito bem o que você sente. Eu sei que aquele tapa no teu rosto e todas as agressões e gritos ainda doem, mesmo depois de tanto tempo. Eu sei que você quase quebrou por dentro. Eu sei o quanto foi escuro e o quanto foi solitário. Eu sei o quanto foi assustador e sem qualquer sentido.
A adolescente levanta o rosto, silenciosa. A mais velha, que finalmente conseguiu ganhar a sua atenção, então completa:
- Não esquece que isso aconteceu há mais de 30 anos. E era eu quem estava lá.
A mais velha agora chora ainda mais alto, debruçada sobre o volante.
A adolescente então percebe brotar em si um sentimento novo. Não entende o que é, não consegue nomear. Há muito tempo tinha deixado de sentir, para poder sobreviver. Mas agora, andando por conta própria, devagar, para mais longe da sua jaula, lentamente acaricia o braço da mais velha, que então a encara, surpresa.
Permanecem por um longo tempo ali, na tentativa de se acalmarem para poder seguir em frente.
Finalmente, a adolescente olha a mais velha nos olhos e diz:
- Quer saber? Foda-se!
As duas riem, então, ao mesmo tempo em que choram.
Ao chegar na praia, estacionam na beira. Saem do carro, deixando as portas abertas. Os gatos farejam o ar marinho, deliciados com o cheiro de peixes. A adolescente tira os All Star, as meias, que joga na areia, ao descer pela ponte, displicente. Ambas correm para o mar, onde param, lado a lado, em frente às ondas, envolvidas por aquele barulho e brisa que tudo levam, que tudo lavam. Sentem a areia sob os pés. Descargas elétricas entre o corpo e a terra.
Passam o resto do dia à toa. Por influência da adolescente, comem muita besteira, depois se estiram e ficam horas sob o sol, sem qualquer protetor solar. Chegam em um consenso sobre a playlist, “vamos para uma batida mais alegre”, pensam, e um bom reggae (embora achem meio clichê para ser ouvido de frente para o mar) sempre cai bem. Êxodus.
Ao fim da tarde, sentam-se sobre as pedras para olhar o pôr do sol magenta, que tanto adoram. A paz que reina é assustadoramente inédita. Não dizem mais nada. Nem precisam. Pela primeira vez, o silêncio entre elas não é incômodo. Fica como uma promessa de que, de alguma forma, dali em diante, podem seguir e sempre que for preciso, se encontrar, naquele espaço entre o choro e o riso, sem medo.
[1] Sady Homrich / Carlos Stein / Thedy Corrêa – “Camila, Camila”.
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