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Chove no Menino Deus

  • Foto do escritor: Maro Klein
    Maro Klein
  • 25 de mai. de 2024
  • 5 min de leitura



Ela acordou novamente com o som dos helicópteros. Havia alguns dias que esse passara a ser um som rotineiro. Acordava sobressaltada, sem saber ao certo onde estava, sem saber ao certo que horas eram. Acordava querendo que tudo aquilo tivesse sido apenas um pesadelo, mas depois de alguns segundos consciente, dava-se conta de que não, infelizmente não era.


Acordava, e as imagens passavam novamente diante de seus olhos. Acordava, e ainda escutava os pedidos de socorro que não lhe saiam da cabeça. Mathias Velho, Mato Grande, Vila Farrapos. As pessoas com as quais falara, não as conhecia. Não sabia nem saberia ao certo quem eram. Apenas buscou ajuda para elas.


Registrou os endereços, ficou pendurada ao telefone. Defesa civil – “você é o número 101 na fila de espera”. Sites de busca. Mapas cobertos de pontos vermelhos. Em cada um, vidas cercadas pela água, à espera de socorro, à espera de resgate. Sobre algumas das pessoas para as quais buscou salvamento, soube depois, estavam seguras. Sobre outras tantas, jamais saberia.


Fizera tudo de dentro do seu apartamento, no coração do Menino Deus. Gostaria de sair para ajudar mais, ir para os abrigos, onde havia tanto trabalho a fazer, mas a idade já não lhe permitia mobilidade. Ficava então, reclusa em seu pequeno bunker particular. Apartamento de fundos, térreo. Não podia mais com escadas. Os quartos dos filhos jaziam tal qual os deixaram, depois de saírem do país, havia vários anos. Ela ficara.


Os poucos amigos já haviam fugido para a praia. Não havia água há vários dias. Na maior parte das horas, não havia luz. Eles lhe perguntaram: “Você vai ficar?”. Vou. “Mas vai ficar bem?”. “Sim, eu ficarei”.


Aquele apartamento era tudo o que lhe restara, era o seu lugar seguro. Cercada pelos seus livros, na companhia dos dois gatos. As fotos nos porta-retratos. A sua cozinha com seus temperos. O jardim improvisado no pequeno pátio externo, suas ervas e plantas para o chá. Não poderia ficar sem aquele pequeno pedaço de verde, sem poder colocar as mãos na terra.


Chove agora no Menino Deus. Chove muito. A chuva enervante. Não, ela já não lhe traz mais calma. Com certo custo, levanta-se da cama, prepara o café. Assiste as notícias. Mais imagens, mais histórias tristes. Desliga a TV. Jamais o silêncio foi tamanha benção.


Senta-se à mesa da cozinha, com a xícara de café nas mãos. Observa a porta aberta para o pequeno pátio, a chuva que cai sobre os grandes vasos de plantas.


E então, de repente, num piscar de olhos, ela se lembra.


Se lembra daquela noite, muitas décadas atrás, quando ainda era uma menina. Teria por volta de cinco anos de idade, mas se recorda, como se fosse hoje. A noite anterior em que foram embora da fazenda velha. Da velha casa de pedra da família, centenária, localizada no fim do mundo.


Naquela noite, a mãe lhe dera banho, a vestira calmamente, como sempre fazia. Penteara seu cabelo. Ela saiu contente, a recolher as suas bonecas. Queria se preparar para a longa viagem na manhã seguinte.


Bonecas de pano, estofadas com lã. Todas feitas pela mãe. Cada uma tinha um nome e sua própria história. Não poderia esquecer nenhuma. Catou pela casa uma lata grande. Colocou uma a uma, as bonecas acomodadas dentro da lata. Colocou então a lata do lado de fora da porta da sala da frente. Assim, pensou, não as esqueceria. Assim, ninguém as esqueceria, nem mesmo a mãe, que andava tão ocupada naqueles dias.


Deixariam a fazenda velha. Iriam para a fazenda nova, nova vida, nova casa, novas terras. Não sabia como seria, só imaginava. Imaginava as árvores. Haveria uma horta? Imaginava os bichos. Sim, teria ovelhas, porque o pai sempre criava ovelhas. Ansiava em correr com elas, afundar as mãos na lã macia. Descobrir um esconderijo, aonde pudesse brincar com as suas bonecas. Subir nos palanques das mangueiras, olhar para os próprios pés, pendurados. Brincar com as bolinhas das pitangueiras.


Foi deitar-se com o coração acelerado. Se viu no escuro, depois do beijo da mãe, com os olhinhos abertos, olhando para o teto de madeira do quarto, que refletia as poucas luzes do lampião do corredor, vindas por debaixo da porta. Não, não havia energia elétrica. Finalmente, depois de algum tempo, adormeceu.


Mas, na madrugada, inesperadamente, choveu. Ninguém previu, ninguém se preparou. Ninguém, nem mesmo a velha e sábia índia, a cozinheira, avisou. Sua avó também esqueceu-se de ler a previsão do tempo deixada pelos rastros das formigas. O velho peão da estância não comentou durante a janta que seu joelho, na verdade, doía. Choveu. Enquanto todos dormiam, choveu. Nenhum bicho emitiu qualquer alerta. Nenhuma porta ou janela bateu e acordou alguém. Simplesmente, choveu.


Quando acordou, foi de pijamas até o corredor. Olhou para a porta da sala aberta, ao final dele. Sentiu no rosto o frio repentino, viu o gramado molhado e as nuvens baixas, ao longe. E então, lembrou-se das bonecas.


Seu coração quase escapou pela boca. As bonecas!!! Foi correndo até o lado de fora da porta. As encontrou encharcadas, dentro da lata. Todas boiando em um estranho círculo. A lã já estava inchada.


Gritou pela mãe, chorando em desespero, entrando em casa de volta,  através do corredor. A mãe ouviu seu chamado, largou o chimarrão na cozinha, e veio ao seu encontro. Ela pulou para o seu colo, chorando muito. Afundou o rostinho em seu pescoço, mal conseguiu falar:


- As bonecas, mãe!! As bonecas!!


A mãe a devolve ao chão: "o que houve, minha filha??". Sem conseguir explicar, puxa a mãe pela mão, a leva até o lado de fora da porta. A mãe olha a cena, balança a cabeça e sentencia:


- Teremos que deixá-las, minha filha, estão estragadas. Não há conserto.


Dói tanto que já não chora. Tenta usar a imaginação, fazer de conta que não aconteceu, mas não há como. Ali estão as bonecas, bem na sua frente. “Não”, reforça a mãe: “Não há o que fazer. As deixaremos aqui. Na fazenda nova, farei outras para você”.


Ela nada mais escuta. Não consegue comer, ainda que a mãe insista. Algum tempo depois, entra no carro, junto da avó, no banco de trás. A avó a abraça, com dó. O carro inicia sua marcha lenta. A estrada é barrenta. A chuva parou, mas o dia está cinza, as nuvens ainda estão baixas. “Mesmo com essa chuva, temos que ir”, diz o pai. Se aconchega na avó, se recusa a olhar para trás, ou para o caminho à frente. Apenas segue.


O barulho de um trovão a traz de volta para o tempo presente. Chove muito. A chuva enervante. O telefone toca. Ela não atende. A luz caiu novamente. Liga o velho rádio de pilha e acompanha as notícias.


Evacuação do Menino Deus, nesse momento, ao vivo.


Alguns minutos depois, escuta o barulho dos vizinhos descendo pelos corredores, os latidos dos cães.


O tempo passa um pouco mais. Escuta algum remanescente descendo, chorando. Uma criança grita, ao longe. Seu telefone toca, toca muito. Ela, novamente, não atende.


Os policiais em seus megafones passam então gritando pelas ruas. Ela escuta a ordem de evacuação imediata.


Permanece sentada na sua poltrona, na sala, em meio aos livros. No velho armário de carvalho, à sua frente – um dos poucos móveis que restou da fazenda velha - algumas bonecas de pano estão expostas, através do vidro, na prateleira de cima. Sobre o mesmo armário, os dois gatos se encolhem, e olham para ela com seus olhares interrogativos.


Os barulhos, então, diminuem, quase cessam. O entardecer chega. Ela então percebe a água, avançando lentamente.

 
 
 

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