A sombra azul de um anjo
- Maro Klein
- 12 de jun. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 29 de jul. de 2024

Sexta-feira, Dia dos Namorados, todos querendo avidamente se divertir. As sombras do entardecer caíam sobre a cidade universitária. Fazia calor, e através das janelas e sacadas dos apartamentos se ouvia uma sinfonia de ovos fritos ou torradas sendo feitas, uma variedade de sons vindos de rádios, cassetes e discos diversos, TVs esquecidas ligadas, ventiladores, e alguns casais se revirando, nus, em colchões jogados no chão.
Ana havia acordado de um sono pesado durante a tarde, depois de uma noite mal dormida, mas foi despertada por Julia, sua colega de república, que invadiu o quarto, abriu as cortinas e lhe balançou as costas:
- Chega desse marasmo, vamos sair dessa tua toca!!
Ana mal lembrava de quem era quando abriu os olhos, e só via a boca de Julia se movendo lentamente. Sua camiseta estava encharcada de suor. Argumentou que a vontade de sair era zero.
- Vai passar o Dia dos Namorados em casa?! Não viu a boate que vai ter hoje no DCE? É a tua chance de dar a volta por cima, amiga!
Ana franziu a testa. Volta por cima? Tinha amargado uma decepção amorosa por meses e meses e a última coisa em que pensava era se envolver com alguém de novo, mas Julia foi incansável e finalmente a convenceu a sair.
Horas depois, Ana a muito custo levantou-se, tomou um banho, se enfiou em um jeans e camiseta, os tênis surrados. Tudo sob protesto de Julia:
- É, desse jeito tá brabo! Mas vai, tá valendo...
Subiram a rua, Ana ainda lenta e Julia cantarolando, a mil: “é hoje, é hoje que eu desencalho” – risos e risos.
Depois de vencerem a fila, submergiram na boate do DCE, que ficava no porão do prédio da casa de estudantes. Paredes pintadas de preto, poucas janelas que davam para um muro alto. Ali jamais entrava a luz do sol. Um bar pintado de amarelo ao fundo, e uma nuvem de fumaça de cigarro permanente.
Ana olhou aquele ambiente e suspirou, quase se arrependendo de ter cedido à pressão de Julia. "Mas, vai, vamos pela parceria". Foram direto ao bar, Ana só queria mesmo era encher a cara, para ver se o tempo passava mais rápido. Julia se sacudia dançando atrás dela, ensandecida. Balançava os quadris em uma minissaia que não escondia muita coisa, os seios se insinuando de dentro de um corpete apertadíssimo. Seu lindo cabelo loiro, encaracolado, era só promessa de pecados. Ela estava encantadora, como sempre.
Julia pegou sua cerveja e foi encostar-se em uma parede.
- Que é isso amiga?? Veio aqui pra ficar aí parada? Eu, heim?!!
O som da boate era tão alto que Ana nem conseguiu responder; Julia já havia sumido no meio daquele povo todo, dançando, Pensou: “só a Julia mesmo, vai ver ela acha que vai baixar um cupido aqui nesse antro! Ô lugarzinho esse esquecido por Deus!”
Mal concluiu esse pensamento, Ana percebeu que um menino lhe observava atentamente, em uma parede obliqua, no outro canto da boate. Procurou por Julia para lhe perguntar quem seria ele, mas ela já havia se afastado, dançando e paquerando quem quer que cruzasse o seu caminho.
Entre os poucos segundos em que as pessoas se movimentavam dançando, ao centro, Ana começou a distinguir a fisionomia do rapaz, que não tirava os olhos dela. Alto, muito, muito magro, pele muito branca, que se destacava ainda mais na roupa inteiramente preta que vestia. “Quem será esse maluco?” pensou. Bebeu sua cerveja, encostou-se na parede, levantando a cabeça para cima, fechando os olhos. Assustou-se muito quando, ao abri-los, o rapaz já estava ao seu lado, também encostado na parede.
- Aí, que susto, nossa!
- Me desculpe, eu não queria te assustar!
- Não, me perdoa, não foi tua culpa, eu sou assustada mesmo – disse Ana.
- Muito prazer, meu nome é Gabriel.
- Prazer Gabriel, Ana – tendo dito isso, Ana abaixou a cabeça porque não queria que ele percebesse que ela ficara vermelha.
Quando a levantou, viu os grandes olhos azuis dele, cujo rosto se aproximara um pouco mais do seu. Seu rosto incendiou-se mais ainda “o que tá acontecendo contigo, sua tonta?!”
- Eu te conheço de algum lugar? Perguntou Ana.
- Não, você não me conhece, mas eu te conheço - respondeu Gabriel.
- Há é, e de onde?
- Há, de umas paradas aí, você vinha sempre aqui, não vinha?
- Sim, eu vinha. Agora tem uns meses que não...
- Eu sei, eu vi.
- Como assim? Viu o que?
- Eu te vi naquele dia, no dia da briga... da briga com o seu namorado.
Ana ficou estarrecida. Como assim? Tinha brigado de fato com o namorado, mas a briga tinha ocorrido no fundo do prédio do DCE, em um beco vazio onde não havia (até onde ela lembrava) mais ninguém.
- Você... você estava lá??
- Sim, eu estava.
- Mas como eu não te vi?!
- Eu estava num canto, tinha saído para fumar um cigarro...
Ana teve a nítida impressão de que ele mentia, mas mesmo assim sentiu muita vergonha.
- Pois é, aquele dia... aquele dia foi bem difícil...
- Eu sei, eu vi – disse Gabriel.
- Mas... o que você viu exatamente?!
- Eu vi quando ele te deu o fora. Vi o quanto ele não te valorizava... Vi o quanto você sofreu...
Ana sentiu seu coração batendo em um turbilhão, envergonhada por Gabriel ter assistido à cena, e ao mesmo tempo comovida em ver que ele falava aquilo com cuidado e com empatia. Não conseguiu segurar as lágrimas.
- Ai, que droga!... – escondeu o rosto com as mãos, para que ninguém a visse chorar, logo ali, naquele lugar lotado.
Gabriel, vendo o seu constrangimento, a abraçou, e ela escondeu o rosto em seu peito. Ana chorou copiosamente, esqueceu-se de onde estava. Apenas se deixou envolver por Gabriel, e o achou tão magro, mas tão magro, que teve medo de machucá-lo ao abraçá-lo forte.
Quando levantou o rosto, olhou para cima, e mergulhou de vez nos olhos azuis dele, que estavam parcialmente cobertos pelos longos cabelos loiros, desgrenhados e cacheados. Ela então afastou os cachos dele de seus olhos e sua boca, e foi de encontro a ela.
Quando se beijaram, Ana sentiu como se o tempo tivesse parado. O barulho da boate cessou. A dor dentro dela desapareceu. Sua ansiedade ancestral teve uma pausa. Suas unhas roídas se reconstituíram. Tudo que ela sentiu, naquele momento, foi uma inédita e imensa paz.
Afastou os lábios lentamente, mergulhando novamente nos olhos azuis dele. Teve vontade de perguntar e de dizer mil coisas, mas sabia que não era necessário. Naquele olhar, ela percebeu que ele era capaz de ler seus pensamentos.
Nisso, Julia volta de repente, pulando muito, a boate está com lotação máxima:
- Vem, Ana, vem, vamos pra aquela rodinha ali, tá muito massa!!
Julia puxa Ana pelo braço para o outro lado. Ana se volta para trás, tentando puxar Gabriel junto, pela mão, mas não consegue. Um grupo de estudantes passou pulando e dançando, abraçados, em círculo, os separando.
Ana parou poucos metros depois e voltou, tentando achar Gabriel. Procurou por ele no fundo da boate, no bar, até mesmo nos banheiros. Nem sombra.
Ficou então parada, cercada pelas pessoas que não paravam de dançar. A fumaça de cigarro era tão densa que mal se enxergava direito. Ana via as pessoas se movendo, mas não conseguia escutar o som. Apenas silêncio. Apenas, de novo, aquela imensa paz por dentro. Apenas aquela sensação de um coração, que, um dia quebrado, foi tocado por um amor imenso, e agora se refez.
Então, Ana entendeu. Ana entendeu tudo.
Mesmo assim, tudo o que agora queria era encontrar Gabriel novamente. O que teria acontecido com ele? Para onde teria voltado? Reapareceria de novo? Qual tipo de magia, ritual ou macumba, Ana poderia fazer para encontrar com ele de novo, pelo menos uma vez mais? Sua mente ansiosa pensava em um milhão de saídas, mas acabava por concluir que nenhuma seria viável. Não fazia sentido! - gritava bem alto - o seu lado racional.
Na medida em que a madrugada avançava, Ana começava a desesperar. "Encontrar com um anjo assim - olhe lá - só uma vez na vida", pensava ela. "Isso é bom demais para ser verdade. O que eu fiz pra merecer isso, em primeiro lugar?!"
Foi para o bar, e, então, como planejado, encheu a cara.
Já eram cinco da manhã quando Julia a arrastou para fora do DCE. Garrafas rolavam pelo chão, casais se beijavam grudados ao muro, bêbados gritavam pelas ruas. Ana virou para o lado e viu Julia pegada com um menino, que parecia completamente enfeitiçado por ela.
- Amiga, tu se importa??
- Claro que não, vai fundo amiga, seja feliz!
Julia sumiu com o menino e Ana ficou parada na calçada. Começava a amanhecer. Ela olhou para baixo, percebeu que os seus tênis sujos estavam desamarrados. Abaixou-se, os amarrou, e, ao levantar, ela então viu.
Viu Gabriel parado em sua frente, rindo.
Ela olhou para ele com os olhos arregalados e incrédulos, e começou a abrir um sorriso que há muito não abria. Então ele lhe disse:
- Ô, mulher.... mulher de pouca fé!!
Os dois riram muito, se abraçaram, e desceram a rua cantarolando baixinho.
Amanhecia então, de vez.
Texto dedicado ao meu anjo caído, G.K. - DCE-UFSM - 1991 => CASA - PoA - Dia dos namorados - 2024.
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